Como pensar a democracia após um governo de extrema direita?

Posse Presidencial 2023

Na América Latina do início do século XXI, o Brasil foi o país que viveu de forma mais bem acabada a experiência de um governo de extrema direita, marcado pelo neoliberalismo, pelo negacionismo histórico e científico, pelo conservadorismo moral, pela manipulação de símbolos nazistas, pelo reacionarismo, por fervorosos discursos em defesa da ditadura militar e, por conseguinte, posicionamentos e ações contra os direitos humanos. Com o golpe parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, o Brasil fechava as cortinas da chamada onda rosa no continente e virava palco para uma das experiências mais danosas ao já frágil Estado democrático de direito.

O cenário tropical da nação brasileira não tornou as cores do governo de Jair Bolsonaro (2018-2022) menos acinzentadas. O contexto mundial de crescimento da extrema direita não deixava dúvidas para a caracterização do que se passou no sul dos trópicos. A emergência do autoritarismo populista e armado até os dentes colocava a democracia em sua forma e substância em perigo.  Na academia, não faltaram nomeações para os processos de enfraquecimento da democracia brasileira: crise da democracia, desdemocratização, democracia em perigo, recessão democrática, erosão e colapso democrático,  enfim, a imaginação política foi longe na tentativa de explicar as ameaças ao regime democrático ainda que este não tivesse se rompido completamente.

Assim, o Brasil é conhecido e reconhecido mundialmente como uma experiência exitosa (para alguns) e desastrosa (para outros) de ascenso da extrema direita na segunda década do século XXI. Analistas sumarizam as combinações de fatores que levaram à ascensão da extrema direita ao poder no Brasil e em outras partes do mundo: crises e frustrações econômicas, perda de perspectiva de futuro, medo e insegurança social. Acrescente-se ao país suas flagrantes e históricas desigualdades raciais e de gênero, bem como as violências e violações de direitos humanos rotinizadas e naturalizadas no imaginário social.

Em que pese a péssima gestão da pandemia de Covid 2019, marcada por negação da doença bem como pela difusão dos discursos antivacina no país, Bolsonaro alimentou a força política para o segundo turno eleitoral, aglutinando grupos conservadores, reacionários, antidemocráticos, cristãos e evangélicos de direita e militaristas até o fim de seu mandato. As tentativas de desmonte do Estado brasileiro e as diversas investidas do governo de extrema direita de se manter no poder atacando o processo eleitoral, bem como a orquestração da polícia rodoviária federal dificultado as liberdades políticas de cidadãos do nordeste brasileiro e de algumas cidades do sudeste não foram suficientes para assegurar a vitória a Jair Bolsonaro no segundo turno. As forças democráticas internas (com a ampla aliança política partidária da esquerda ao centro, bem como as movimentações intensas da sociedade civil fortemente articuladas) e a mudança na geopolítica mundial com a vitória eleitoral dos democratas nos EUA e os ganhos no novo giro progressista na América Latina, como a chegada na Colômbia de Gustavo Petro e Francia Marques, com o Pacto Histórico, ou mesmo com a retomada da esquerda no Chile, com Gabriel Boric, ou ainda o retorno da esquerda ao poder na Bolívia, convidavam o Brasil a reerguer-se novamente como democracia na maior economia da América do Sul.

Numa emocionante campanha que resultou na apertada vitória de Luiz Inácio Lula da Silva com uma frente ampla em direção àquele que foi o seu terceiro ato de governar o Brasil. Agora, diferentemente de 2003/2006 e de 2007/2010 em face da extrema direita. Este terceiro mandato de Lula tem por desafio enfrentar as direitas antidemocráticas, a extrema direita institucionalizada no Poder Executivo federal, nos estados e municípios brasileiros, bem como no Legislativo e em espaços expressivos do Judiciário. Mais do que isso: o pensamento e as práticas da extrema direita se encontram presentes e organizados no tecido social.

Em contraponto, a retomada democrática precisa de sustentação ao longo do tempo. O atentado contra os três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, bem como as mobilizações pós-eleições, visto pela permanência dos acampamentos de pessoas adeptas ao bolsonarismo, coloca para nós o desafio de pensarmos a reconstrução da nossa democracia, de baixo para cima. Devemos enfrentar de forma firme os grupos responsáveis por alimentar o ódio e a desinformação, bem como aqueles que financiam e fortalecem ideologicamente a deslegitimação do processo eleitoral, negando a vitória de Lula por meio de acusações falsas, questionando a eficácia das urnas eletrônicas ou mesmo pregando abertamente a destruição física do presidente eleito em 2022.

 Mais do que responsabilizar os grupos políticos e econômicos por traz das ações que visam desestabilizar a democracia brasileira após as eleições de 2022, é preciso ter clareza de que estamos diante de um contexto especial no que tange à necessidade de revermos de forma radical os nossos parâmetros de vida coletiva, uma vez que a estabilidade democrática vive perigo real até mesmo em países com longa tradição de democracia liberal, como foi o caso da experiência norte-americana com o Donald Trump. Vivemos um momento em que a própria palavra tolerância parece ser insuficiente para dar conta da convivialidade.

Nesse cenário complexo, o que a experiência brasileira pode aprender e ensinar?

Em primeiro lugar, é preciso voltarmos a ter a capacidade de imaginar o futuro. Mais do que isso: é preciso termos capacidade de imaginar um futuro comum, em que diferenças coexistam com igualdade de fato. Não é por menos, trata-se do desafio histórico e persistente das democracias existentes nos séculos XX e XXI. Na maioria das vezes, elas não conseguem garantir a cidadania a todos no contrato político, legando rastros profundos de violências e desigualdades sistêmicas na vida cotidiana. Tais desigualdades e violências são o solo fértil para os discursos de extrema direita que não têm problemas com as desigualdades, ao contrário, constroem uma projeção do futuro ancorada num passado imagético em que supostamente todos tiveram uma vida melhor do que no presente, bastando arregrar-se aos valores tradicionais, como homogeneidade nacional, autoridade militar e família nuclear patriarcal e heteronormativa.

Em segundo lugar, é preciso haver um certo equilíbrio social e político que consiga conciliar minorias e maiorias, demográficas e sociais e políticas. É preciso comunicação e solidariedade entre os grupos. Mas, como fazê-la? No Brasil, muito se fala em pautas identitárias, mas essas aparecem mais como discursos vazios – que mais rotulam do que explicam – e, por isso, estão longe de explorar as reais demandas dos movimentos sociais brasileiros – como os movimentos negros, LGBTQIA, feministas, indígenas, quilombolas, de entre outros. Esses movimentos lutam por direitos e reconhecimento. Neles, as demandas através das identidades devem ser pensados como estratégia para a garantia de seus objetivos tais como: direitos à vida, ao tratamento justo, à igualdade, ao respeito e à dignidade humana às suas formas de existência.

A diversidade é inexorável às democracias modernas e contemporâneas. Embora seja um fato, a diversidade nas democracias é um grande fardo para muitos. Mais do que fardo, é fonte de conflito. Conflitos esses que escapam em muito ao espaço plural de ideias. Ao escapar ao diálogo, ganha a forma de discurso de ódio, de xenofobia, de políticas de exclusão, arena para fundamentalismos, para a extrema direita, como vimos no caso brasileiro.

 A defesa normativa a que me proponho aqui visa à oportunidade para apostarmos em um amanhã com estabilidade democrática. As instituições podem ser boas mediadoras de conflitos e podem corrigir fortes e persistentes injustiças. A experiência da resiliência das nossas instituições, especialmente das burocracias com maior histórico de protocolos e normas enraizadas na cultura institucional, mostra que o Estado brasileiro pode sustentar um abalo sísmico e ainda assim resistir sem a perda completa da democracia. Ainda que esta tenha precisado respirar por aparelhos durante o governo passado.  

Diferenças ideológicas, sociais, de cultura, de etnicidade, de gênero e de religião, por exemplo, podem conviver desde que os valores democráticos e normas de convívio comum sejam salvaguardadas e estejam bem enraizadas no tecido social. É possível apostar na cooperação entre os grupos diversos em nossa sociedade. Mas é preciso esforço para que isso ocorra, tanto por parte dos políticos – da política institucionalizada – como dos cidadãos em seus valores e práticas. O recado é claro, mesmo que tenha sido muito difícil até aqui, não há razões para desistirmos da democracia com diversidade e igualdade, de fato.

A retomada democrática precisará dar essas garantias constitucionais aos seus diversos cidadãos ao mesmo tempo em que precisará responsabilizar os agentes públicos, sociais, civis e militares dos atentados que cometeram contra a democracia. A extrema direita precisa pagar pelos danos materiais e imateriais que cometeu contra o Estado e contra os seus cidadãos. Sendo assim, não será possível uma verdadeira retomada democrática sem enfrentarmos os fantasmas velhos e jovens que batem às nossas portas.

 

Este artigo faz parte do Webdossiê Religião, democracia e extrema direita. Acesse aqui o Webdossiê.